A Lapónia não é sítio onde se nasça. A neve cega os olhos de
cores escuras e o frio embranquece-se de tal forma que o sol dá em louco: ora
teima em não se pôr ora hiberna como os ursos que por ali moram. Os outros
habitantes da Lapónia, aqueles que não são ursos, habituaram-se a conviver em
silêncio com as estranhezas do fim do mundo. Quem não saiba da neve, pensa que
isto fica do outro lado da estratosfera, num planeta omisso dos manuais, ou nos
anéis de Saturno. Pois aqui, onde a Terra deixa de o ser, a população, de gente
escassa, sabe de coisas que outras gentes não sabem. E já se acostumou a
guardar segredos. Como o daquele parto, na noite clara, a que assistiram três renas,
um trenó e um anão zangado a servir de médico. Eu fui mãe.
Como o frio por ali não se agacha, já há muito aceitamos
que, por mutação genética, bebés nasçam de casaco de lã e botas calçadas. Quem
sofre, claro está, é a mulher que tem de deitar aquilo tudo cá para fora, como
se um corpo, por si só, não pesasse o suficiente ao sair. Por isso, nem
comentários se ouviram, quando o anão habilidoso, puxou pelo gorro a criatura
abafada que fugia das minhas pernas. Mais esquisita parecia aquela barba
ondulante, longa e branca, num ser ainda mal nascido. Pensei que tinha dado à
luz um Iuti, um abominável homem das neves. Mas percebei depois , pela fatiota
vermelha e a cara simpática, que de algo mais anormal se tratava.
Não dei logo nome à aberração. Deixei-a por ali nascida e
vermelha, a ver como se movia. E até pensei em escondê-la. Mas passados os
meses da escuridão, não tive como afastá-la do mundo e inscrevi-a aqui mesmo na
escola da Lapónia. Chamei-lhe Nicolau, que era a marca do gorro. E assumi a
minha maternidade colorida.
Nicolau não teve uma infância fácil. Os meninos da Lapónia
gozavam com a sua ‘vermelhesa’, e puxavam-lhe as barbas, rindo-se com maldade,
como se quisessem com elas cobrir o resto do corpo de branco. E ele deprimia-se
a comer rabanadas de vento e sonhos de um mundo de todas as cores. A sua
vontade era ‘embarrigar’ os outros contra a parede e assim ganhar respeito pela
força. Contudo, algo na sua natureza barbuda o impedia de vis atos.
Mais feliz se sentia no seu mundo secreto, onde os animais
falavam e dezenas de seres minúsculos lhe enchiam a barriga de fritos, enquanto
ele, por malandrice, se esgueirava pela chaminés dos vizinhos. Assim como o
sol, acomodava-se à claridade da casa enquanto Inverno se exibia escuro.
Demorei dois anos a tratá-lo por filho, mas a partir daí amei-o como se de um
filho se tratasse.
Por isso chamo-o agora assim. O meu filho, Nicolau, sempre
que voltava à escola, depois do hiberno, entristecia-se e tingia-se de
vermelho. E quanto mais vermelho ficava, mais os outros engalfinhavam com a sua
diferença. Houve um dia que, para cúmulo, o pintaram de branco, tal a
intolerância à cor. De um branco hediondo e pardacento.
Se morasse lá para as Américas, Nicolau teria incendiado a
escola, como nas histórias que se contam na televisão. Mas cá na Lapónia, no
admirável mundo tranquilo, quanto mais vermelho mais bonzinho se fica. Nicolau
vingou-se ao contrário. Foi comprar sonhos aos duendes, enfiou-os para dentro
de um saco e ofereceu-os ao desbarato aos inimigos da escola. As crianças
choraram de emoção ao verem os seus sonhos desembrulhados e prometeram
portar-se bem para o resto do ano. Nunca mais o importunaram e passaram a
tratá-lo como um Pai. E só não arranjou namorada porque temia ter um filho
barbudo e vermelho como ele.
Mas isto de dar prendas pode tornar-se um pouco viciante. E
o meu filho, pobre coitado, entusiasmou-se com a dádiva e quis distribuir
presentes por todas as crianças e a alguns adultos. Partiu de sacola às costas,
com as renas a puxar um carro, e fez-se ao mundo. Passou por universos de terra
amarela, prados verdes, e luzes intermitentes. Percebeu que a vida não é feita
apenas de flocos de neve.
E se anda pelo o mundo é porque há anos que não regressa à
Lapónia. Talvez nem saiba que a sua mãe está velha e sente muito a sua falta. É
esse o motivo pelo qual vos escrevo esta carta. Se por acaso o virem, de saco
às costas, a arrepiar caminho pelas chaminés, por favor, digam-lhe que me
telefone ou que me faça uma vista. Nem que seja pelo Natal.